sábado, 25 de maio de 2013

Quanto custa (e quanto valeria) um povo aprender a língua de outro?

23/05/2013 16:33


Por Afonso Camboim

“Alguém já perguntou se o Bill Clinton fala português?”
Luiz Inácio Lula da Silva
(Em resposta a um certo pressuposto de que um presidente brasileiro teria de saber falar inglês)

A começar pelo título (e pela epígrafe), este é um artigo de perguntas, mais que de respostas. Num mundo em que "nada vem de graça", tudo é vendido ou comprado, por que será que não se cogita sobre o custo (e muito menos sobre o valor) de um país inteiro, como o Brasil, estudar uma determinada língua estrangeira? O que significa um povo aprender a língua de outro – e sem reciprocidade? Esse não é o mais acabado exemplo de investimento no patrimônio alheio?
O que o Brasil acha que está fazendo ao reservar quase toda a sua juventude, década após década do pós-guerra (porque antes as línguas estrangeiras hegemônicas foram outras), como mercado cativo para exploração da “indústria” da anglofonia? Quanto sai do bolso dos brasileiros, de forma direta e indireta (livros didáticos, direitos autorais, formação de professores, tempo...) para bancar o estudo da língua dos ingleses/estadunidenses, e quanto se evade do País em decorrência dessa “opção”? Esse “bem” que compramos cotidianamente e em massa, compulsoriamente, tem valor intrínseco, ou quase todo o “seu valor” é agregado artificialmente, inflacionado pelo sistema educacional/institucional brasileiro, na forma de conteúdo obrigatório para aprovação em escolas públicas e em concursos públicos? Que tipo de “prejuízo” sofre o estudante norte-americano, por exemplo, quando sua completa ignorância do nosso português não o elimina ou desqualifica em coisa nenhuma no seu país?  
Não é a língua o principal meio pelo qual se propagam a cultura e todos os demais produtos de consumo oriundos de um povo? Aprender a língua de um povo não é tornar-se espectador dele ou torná-lo foco preferencial de atenção? E isso não é qualificar-se especialmente como consumidor dos produtos desse povo? “Investir” nessa “qualificação” não equivale a pagar para ser cliente ou a comprar ingresso para entrar no supermercado? Um mínimo de noção de direito do consumidor não impeliria ao oposto, ou seja, a exigir contrapartida pela escolha e fidelidade? Não caberia, pois, ser de algum modo “vendido” o direito para que determinada língua estrangeira fosse ensinada a determinado povo? Ou nossa fidelidade tão duradoura e massiva, tão oficialmente promovida, não tem valor nenhum, a ponto de, pelo contrário, precisarmos aplicar dinheiro público nela? Por que nos obstinamos em comprar, apenas, um produto que em si pressupõe um componente valioso que poderíamos vender?
Quanto custa a comodidade de um cidadão ou um governo poder acessar os outros na sua própria língua? Que nível de vantagens fica tacitamente conferido em todas as formas de transações e intercâmbios? Por que um povo deve pagar, “investir”, a fim de garantir a outro tão inquestionável privilégio? Não são os privilégios, num contexto civilizado, comprados ou devidamente conquistados? Que estudante brasileiro concedeu ao governo o direito de oferecê-lo (com ônus ao governo e ao estudante) como receptáculo de determinada língua/cultura estrangeira? Se cabe admitir privilégios nessa área, por que não buscar garanti-lo ao português – o que tanto nos beneficiaria? Por que não estabelecer, pelo menos, um pacto de reciprocidade, do tipo “eu estudo a sua língua se você estudar a minha”? Por que não combinar, pelo menos, que “sua língua será obrigatória no nosso sistema educacional se a nossa língua for obrigatória no seu”?
Se há milhares de línguas no mundo (entre as quais muitas nativas de milhões de indivíduos, como o russo, o híndi, o alemão, o mandarim, o árabe...), será que a língua de um povo pode ou deve ter privilégios sobre as dos outros? Tais privilégios se sustentam sem um apoio tácito ou explícito de outros governos? Será que é digno e lícito a um segundo povo promover “distraidamente”, inclusive com investimentos públicos, tais privilégios? A formação e qualificação de professores, a criação de programas e incentivos em prol da proficiência em certa língua estrangeira e tudo o mais que se faça nesse sentido não serviria apenas para agravar um “pecado original”? Não se torna mais irreversível um erro na proporção em que melhor se caminha na direção errada? O que o Brasil, por exemplo, enquanto nação e enquanto povo, teria a ganhar, se (por um milagre às avessas) o alunado em geral alcançasse proficiência máxima em inglês? Isso poderia ser de fato computado como uma vitória da educação (logo, da cidadania brasileira), ou muito pelo contrário?
O despretensioso e ingênuo conjunto de indagações que constitui este artigo pretende apenas ousar um olhar noutra direção, alheio ao MEC, ao senso comum e à grande imprensa. Talvez equivocadamente, ele parte do pressuposto de que o óbvio ululante nem sempre é considerado. Ao mesmo tempo, pressupõe que os cidadãos podem “dar palpite” em decisões de governo e que, na área de política do ensino de línguas, haveria ainda alguma margem para novas propostas. Entretanto, é possível que o egrégio governo brasileiro e a elite intelectual do país já tenham feito a sua definitiva opção de que “você precisa aprender inglês”, de que levantar a hipótese de se adotar uma língua internacional politicamente neutra deve permanecer fora de cogitação.
Está mesmo fora de cogitação o ensino público de uma língua internacional qualificada, como o Esperanto? A humanidade, que já se aventurou com o egípcio antigo, o latim, o grego, o francês e tantas línguas hegemônicas, vai insistir indefinidamente na internacionalização de uma língua nacional, ou vai adotar uma língua internacional de verdade? O problema da comunicação verbal direta entre os povos pode ser resolvido decentemente, ou nos assumimos definitivamente incompetentes para resolvê-lo – mesmo dispondo de eficaz instrumento? Um problema da humanidade não é também um problema de cada povo? Não caberia ao Brasil ser proativo nesta questão, como tem sido em outras?... Concluindo: por que o Governo brasileiro, ao invés de deixar gerações de esperantistas à margem das instituições, estudando a língua sem contrapartida, por sua conta e risco, não passa a fomentar por meio de políticas públicas de ensino essa energia espontaneamente gerada?
Dentre todas essas perguntas, bastaria o governo brasileiro dar uma resposta para esta última. Mas fazê-lo serenamente, apenas depois de acuradísssima análise das características da interlíngua proposta –  conforme fez a Unesco, antes de passar a recomendar reiteradamente o Esperanto como língua-ponte a todos os povos.


                                               
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sábado, 11 de maio de 2013

Falar uma segunda língua, sim - mas em que nível?


Falar uma segunda língua, sim – mas em que nível?
(um depoimento com ponderação)
Por Afonso Camboim
Coloco-me na perspectiva do jovem estudante de “língua estrangeira moderna” – LEM, no ensino fundamental ou médio, numa escola pública de qualquer cidade brasileira. É facílimo, porque além de ser a realidade de quase todos, foi também a minha, ex-aluno de inglês e de francês, e a dos meus filhos. Tenho 52 anos, sou licenciado em Letras, mestre em Teoria Literária, e não falo nenhuma língua estrangeira. Meus filhos também não, embora tenham estudado nos Centros Interescolares de Línguas – CILs da Asa Sul (Brasília), situados entre as melhores escolas públicas de línguas do País. A prole continua estudando inglês, UnB adentro.
É fato. Estudamos línguas estrangeiras por quase uma década (no meu caso inglês, francês, latim e um pouquinho de espanhol) e não falamos nenhuma. Seríamos um caso à parte? De forma nenhuma. Um mínimo de esclarecimento e de honestidade do leitor, jovem ou adulto, universitário ou graduado, inclusive muitos professores (de língua estrangeira!), lhe obrigará a admitir simplesmente que também não fala.
Há as exceções, claro: principalmente a dos que têm uma extraordinária facilidade, além de tempo e dinheiro, para aprender idiomas (casos raros); a dos que residiram/estudaram por um bom tempo no exterior; e a dos que são rigorosamente obrigados pela profissão, como o professor do respectivo idioma de um modo geral. EXCEÇÕES.
Há também os que entendem tão pouco de língua a ponto de acharem que “dominam o inglês”, por exemplo, porque decoraram algumas palavras soltas e frases cotidianas, que repetem com um entrópico e incontornável sotaque de estrangeiro; ou os que, quais afásicos, aventuram-se com esforço a “formular” frases sem a menor garantia de que estariam mesmo reproduzindo com um mínimo de fidelidade o próprio pensamento ou o matiz semântico pretendido. Nessa desconfortante situação encontra-se, com certeza, a maioria dos “anglófonos”, dentre os 6% da população mundial que “aprendeu” inglês como segunda língua – outros 6% são falantes nativos, o que totaliza o universo anglofônico de 12% da humanidade (apenas).
A “catástrofe” do amplo desconhecimento da língua estrangeira que se estuda, aliás, é denunciada cotidianamente pela imprensa, porém como se fosse mais uma aberração produzida pelo governo ou pela escola. Sinto decepcionar certos agentes da mídia, mas é preciso que se reconheça que este é um caso em que não adianta pôr a culpa no governo ou na escola, muito menos nos professores ou nos alunos. Quando se trata de língua vernácula, a falta de proficiência pode ser atribuída a esses "culpados"; quando se trata de língua estrangeira, não: o problema é mais embaixo. O núcleo da questão (que geralmente é negligenciado) é o conglomerado de dificuldades intrínsecas de se falar uma segunda língua natural: as irregularidades ou alogismos inerentes às línguas naturais, a readaptação dos órgãos articulatórios para a pronúncia, o redobrado esforço mnemônico para a incorporação semântico-vocabular e a mais ou menos traumática “afasia pré-proficiência” (fase em que estaciona a grande maioria dos estudantes de LEM). A culpa de todos restringe-se a negligenciar uma verdade gritante: a de que é dificílimo ter proficiência (pensar) em uma língua estrangeira.
Ao aprendermos na infância a língua materna, a faculdade da linguagem, inerente a todo ser humano, adere intensamente a esse primeiro código linguístico a ela disponibilizado, que passa a se consubstanciar como a forma individual de manifestação do eu mediante a linguagem. A adesão a um segundo código linguístico a ponto de nele poder codificar ou decodificar a linguagem verbal, mediante escuta ou leitura, produção oral ou escrita, implica complexos descondicionamentos e recondicionamentos, e por isso está longe de ser fenômeno banal para a maioria das pessoas, ditas “normais”. Aqui começa o problema, que se fortalece em função da diferente “lógica interna” do novo código linguístico e de sua particular psicologia.
Afirmo, sem vergonha ou constrangimento, que não falo nenhuma língua estrangeira, justamente porque, na condição de professor de português, autor de livro premiado, conferencista, criador de poemas e ensaios, revisor de textos, sei muito bem o que é falar uma língua e conheço muito bem os desafios da verbalização – mesmo na língua materna. Ouso dizer que tenho proficiência em português (apesar de não dominar ativamente uma infinidade dos seus elementos - como o vocábulo... profligar), apenas porque meu pensamento elabora-se naturalmente nesta língua; porque nela posso entender claramente quase tudo o que se diz e por ela expressar, na fala ou na escrita, quase tudo o que pretendo. Nas línguas estrangeiras que estudei essa capacidade não chega a 5%, o que ficaria sobejamente demonstrado se eu tentasse (mesmo com a ajuda de gramáticas e dicionários) escrever o presente artigo em qualquer uma delas, ou nelas discutir (principalmente perante falantes nativos) temas do cotidiano como o vegetarianismo ou a internacionalização da Amazônia. “Falar uma língua” nesse nível (com um bloqueio de uns 95%), além de ato frustrante, não passa de grave afasia induzida – sem lesão cerebral. Tal nível não faculta falar, mas apenas balbuciar a língua. Não falo, pois, nenhuma língua estrangeira, por um motivo básico: nunca consegui ser eu em nenhuma delas.
Não é possível demonstrar, em tão minúsculo artigo, todos os elementos cognitivos implícitos no ato de falar uma língua, ou seja, de dominá-la num nível mínimo em que valha a pena arriscar-se a utilizá-la, com foco no pensamento e não na gramática, sem ter de exaurir-se mentalmente na distinção dos vocábulos, dos conectivos, das concordâncias, das conjugações, das ortografias, das pronúncias, das exceções... Mas o aluno em geral intui, ou constata com um mínimo de autocrítica, que aquela “fácil fluência” que tão habilmente conquistou na sua língua materna simplesmente não se manifesta na segunda língua, após anos de estudo, repetição e treinamento. Sente-se deficiente, como de fato passa a ser naquele campo, mas observa que não é exceção; e, desestimulado, acomoda-se em meio à regra, em que todos fazem “o possível”: decoram “fragmentos de língua”, a fim de não serem “reprovados de ano”.
Há, pois, um sério problema. Gastam-se tempo, esforços e muitos recursos públicos, com necessariamente baixa possibilidade de retorno, na expectativa ilusória de que os alunos alcançarão proficiência em uma língua estrangeira: um investimento de anos e bilhões para o indesejado resultado, quase sado-masoquista, da afasia e do balbucio. No que toca à gestão, avalie o governo. No que toca ao estudante, por que mantê-lo nesse suplício frustrante (ainda que dele não tenha nítida consciência)? Aqui está a culpa do governo e da escola. Já que é inviável  disponibilizar aos estudantes escolas dotadas de recursos instrucionais modernos, acompanhamento psicológico, carga horária compatível e verbas necessárias para viagens de “imersão” aos países falantes das respectivas línguas (o que decerto atenuaria o problema exposto), por que não buscar alguma alternativa?
Que alternativa? - perguntaria o leitor. Por que não o Esperanto? - eu responderia. Estudarmos uma língua estrangeira seria mesmo imprescindível, se a) o resultado fosse a proficiência; e b) se essa língua, enfim aprendida, bastasse para facultar o intercâmbio com a cultura de todos os povos. Já que as evidências mostram que não ocorre uma coisa nem outra, cogita-se o Esperanto por apresentar relevante diferencial. Vários experimentos científicos realizados em universidades demonstraram que o Esperanto tem valor propedêutico (favorece a aprendizagem de línguas) e que, por ser uma língua planejada e lógica, com gramática compacta e regular e com pronúncia facilitada por um alfabeto fonético, pode ser aprendida com 10 a 20% do tempo/esforço gasto no aprendizado das outras línguas. Além disso, na medida em que os povos, motivados por isso, crescentemente adotam essa interlíngua, ela tende a se tornar efetivamente uma língua-ponte mundial. Desse modo, ela atenua significativamente os dois problemas acima citados, pois favorece em mais de 80% o fator proficiência e tem um elevado potencial de maior abrangência entre os povos.
Não poderia encerrar este depoimento sem acrescentar um “detalhe”: a segunda língua em que começo a sentir-me proficiente não é uma língua estrangeira: é justamente o Esperanto, que aprendi por iniciativa própria, sem escola e sem professor, por ser mais fácil, por pertencer à humanidade e por abrir a possibilidade efetiva de uma comunicação internacional eficaz, não mais que bilíngue. O problema que aqui apresentei, portanto, tem solução: o bilinguismo língua vernácula X Esperanto. Basta os estudantes perceberem e os governos quererem. Mãos à obra!